O Cântico dos Cânticos
do livro "Vilhena"
Em tempos que já lá vão
Na velha rua das Trinas,
Entrava-se por um portão
Para uma casa de meninas.
Foi ali que debutou
A heroínas desta história,
Que no fado se finou
(Deus a tenha em sua Glória).
Chamava-se Sulamina;
E as doces carícias dela
Levavam os homens ao céu
(Afirmava a clientela).
Quando veio aquele decreto
Liquidando lupanares,
Mudou-se para poiso incerto;
Passou a viver nos bares.
É bela a vida dos bares
"Boites" e cabarés;
Mas, fazer ofício disso,
Muito agradável não é.
Veio-lhe um dia a ambição
De ter a sua casinha,
Com cama para dormir
Onde dormisse sozinha.
E ter um colchão de molas,
Guarda - fatos e psiché;
Esquentador e fogão,
Quarto de banho e bidé.
Não viver mais em pensões;
Acabar com aquele fadário;
Ser dona de casa sua,
Montada por um otário.
Andava com esta fisgada
Quando um dia encontrou
O banqueiro Salomão
A quem logo se atirou.
Combinaram encontrar-se,
Longe da vista das gentes,
Numa pensão "muito limpa,
Com águas frias e quentes".
E, já com a determinação
De extorquir o dinheiro
Ao otário Salomão
Cantou-lhe o "Canto Primeiro".
Canto Primeiro
Beija-me com beijos da tua boca,
Põe uma toalha no abat-jour lilás,
Nos teus braços eu fico como louca,
Desaperta esse colchete atrás.
Atencioso Salomão,
Desapertou-lhe o colchete;
E a blusa dela tombou
Para cima do tapete.
Estava um pouco nervoso
Ao descobrir tanto encanto,
Sulamina aproveitou-se:
Cantou-lhe o “Segundo Canto”.
Canto Segundo
As minhas pernas fremem de desejos,
Apalpa aqui; repara como estou.
Para um bocadinho com os beijos...
Sai o fecho da saia que enguiçou!
Muito habilidosamente,
Salomão, já mais ousado,
Em menos de três segundos,
Abriu o fecho enguiçado.
A saia dela caiu
E foi caindo mais roupa.
Quanto mais roupa caía
Mais crescia a água na boca.
Vendo a perturbação
Que dominava o parceiro.
Não esteve com mais aquelas;
Cantou-lhe o "Canto Terceiro
Canto Terceiro
Tu inebrias como um cacho de uvas
Sumarento das vinhas de Egandi.
Existem recônditos em meu corpo
Que guardei e reservo para ti.
Ao mesmo tempo tirava
A combinação rendilhada.
Salomão apatetado,
Estava sem dizer nada.
Pois, situação como esta,
Embora seja frequente,
Põe-nos um nó na garganta
Que trava a fala da gente.
E, naquele jogo insensato,
Dominando a situação,
Reduziu a um farrapo
O banqueiro Salomão.
E o Banqueiro Salomão,
Já reduzido a um farrapo,
Apenas balbuciou:
- Onde é que eu ponho o casaco?
Para resistir a isto
Precisa um homem ser santo;
E ela não lhe deu tréguas
Cantando-lhe o "Quarto Canto".
Canto Quarto
Põe-no além em cima da cadeira,
Vem; abraça meu corpo perfumado
Que exala o odor da cerejeira
Da mirra e do incenso… Oh! meu amado.
As Persianas corridas
E o reposteiro fechado
Coavam uma luz difusa
Que convidava ao pecado.
E quem passava lá fora
A dois passos mesmo á beira,
Não lhe passava pela ideia,
Semelhante escandaleira.
Tirou os sapatos altos
Com um sadismo estudado
Cada movimento dela
Tinha um sabor a pecado.
Suas meias eram pretas
Como manda a tradição,
Negras como a barba dela
E as barbas de Salomão.
Sentou-se à beira da cama
Descalçou-as lentamente,
Recitando o Canto quinto
De todos o mais pungente.
Canto Quinto
A sábia carícia dos teus dedos
Produz em mim a estranha sensaçã
Caramba! Lá me caiu outra malha!
Isto é que é uma gaita Salomão!
Em ceroulas o Salomão
Murmurou palavras ternas
Que as meias não importava
O que importava eram as pernas.
Como dois pilares do Templo
As pernas de Sulamina
Eram perfeitas, esguias
Tratadas a bronzalina.
Nesses pedaços de carne
Salomão ousadamente,
Pôs a a ponta de dois dedos
E comprimiu levemente.
Ela soltou um gritinho
De dor e fingindo espanto,
E, ao ouvido, baixinho
Impingiu-lhe o sexto canto.
Canto Sexto
São os teus afagos manjar de boda
Agradeço a Deus porque me encontras-te,
Cuidado que estás a arranhar-me toda!
Ah! Malandro que não te barbeaste.
Falou de maneira terna
Sorriu de terna maneira,
E colocou uma perna
Em cima duma cadeira.
Tirou o cinto das ligas
Lentamente devagar,
Tirou as calcinhas pretas
Pouco mais tinha para tirar!
Salomão estava grogue,
Parecia petrificado
Com as ceroulas vestidas
E com um sapato calçado.
As ceroulas eram brancas
Eram cem por cento lã
Do melhor que se fabricou
Na fábrica da Covilhã.
Eis que é chegado o momento
De pormos um ponto final,
Rematando o episódio
Da maneira bem moral.
Pois é bem nosso costume
E já o Eça o fazia
Embrulhar toda a verdade
No manto da fantasia.
Para tornar isto moral
No ponto em que as coisas estão
É preciso muito caco
E muita imaginação.
Precisamente na altura
Em que entravam na cama,
Ouviu-se bater à porta
E apareceu um «paisana».
A seguir entraram mais
Quatro tipos de cacetete,
Parecia um orfeão
A cantar o Canto Sete.
Canto VII
Nós somos da brigada dos costumes
E andamos na fiscalização.
Viemos prender esta menina.
Faça um favor e vista esse roupão.
Salomão, aborrecido,
Esquecendo a educação,
Ergueu os braços ao céu
E soltou um palavrão.
Os policias não gostaram
Daquela observação,
Um deles, mais expedito,
Aplicou-lhe um bofetão.
Salomão vestiu as calças
E abotoou a carcela.
O pobre nunca se vira
Em situação como aquela.
Os policias, atrevidos,
Deram alguns apalpões.
Sulamina deu gritinhos
E soltou exclamações.
Ali foram acusados
De praticarem o Coito
A cortezã defendeu-se
Cantando-lhe o CANTO OITO.
Canto VIII
Este homem é meu e eu sou dele
O nosso amor é ingénuo e sem malicia
A afeição entre duas criaturas
Não creio seja um caso de policia.
Vamos lá é despachar,
Disse o chefe da brigada.
-Põe o vestido e os sapatos
Não fiques p´raí pasmada.
E você, faça o favor,
Disse para Salomão,
De me dizer o seu nome,
O estado e a profissão.
Salomão é o meu nome
E o estado é solteiro;
Tenho cinquenta e três anos;
A profissão é banqueiro.
Quando ouviu dizer isto,
O "pasma" ficou passado,
Uma bronca como aquela
nunca tinha imaginado.
Pois tudo quanto encontrava
Em casas de perdição
Eram sujeitos vulgares
Que não tinham posição.
Desculpe Vossa Excelência,
Por o termos perturbado.
Não teria vindo aqui
Se tivesse adivinhado.
Mas fique à sua vontade,
Nós vamos já retirar.
Foi um engano tremendo,
Peço p´ra nos desculpar.
Agora que estou vestido,
Creio que não vale a pena
Recomeçar outra vez:
Repetir a mesma cena.
Como homem de princípios,
Creio que é meu dever
Aconselhar o senhor
A que deve proceder.
E dizendo estas palavras,
Saiu do quarto feliz,
Entre as vénias dos policias
E a raiva da meretriz.
Mal refeito do encravanço,
O chui voltou-se p´ra dama
Que aguardava a sua sorte
Sentada à beira da cama.
Começou com modos meigos:
Como se chama a menina?
Estarei a conhecê-la?
Não será a Sulamina?
Ela ergueu os olhos grandes
Para o policia, assustada.
Lia-se-lhe na expressão
Que estava muito enrascada.
Com ar de submissão
Dum cão a olhar p´ró dono,
Soltou um fundo suspiro
E gemeu o CANTO NONO.
Canto IX
Ninguém já pode amar tranquilamente
Sem a policia vir coscuvilhar,
Seja amável comigo, senhor guarda
Faça que não vê… deixe-me cavar.
Cale-me já essa boca
Que começo a ficar bera,
Acabe lá de se vestir
Que está a ramona á espera.
A dona da hospedaria
Estava no patamar
Ladeada de dois chuis
E com olhos de chorar.
Escostadas à parede
Estavam sete outras damas
Que tinham sido encontradas
Metidas em outras camas.
E lá marcharam as oito
Mais a dona da pensão,
Para a ramona que as esperava
Para as levar ao Cangarrão.
As vizinhas estavam todas
A espreitar às janelas,
E diziam entre si
“Lá vão aquelas cadelas”.
Depois que o carro partiu
Cada qual se recolheu,
E fecharam-se as janelas
Entretanto escureceu.
PS:
Já tinha escurecido
Quando o profeta Isaias
Apareceu naquela rua
Para ir à casa das tias.
Deu com as ventas na porta.
Ficou muito admirado.
Mas a porteira do prédio
Deixou-o logo informado.
Então o senhor não sabe
O que foi que se passou?
Isaias não sabia
E ainda se admirou.
Embora fosse profeta
Não havia adivinhado
Que as meninas foram presas
E a casa tinha fechado).
Pois veio aí a ramona
Á cata de uma menina,
E fizeram uma rusga
À pensão da Dona Lina.
Voltou para casa o Isaias,
Ia mais triste que a morte.
E nassa terrível noite
Lá dormiu com a consorte.
fim